quarta-feira, 30 de setembro de 2020

O óbvio precisa ser dito


 Estava eu, dia desses, na fila do supermercado, quando uma senhora chegou perto de mim e, olhando nos meus olhos, falou através da máscara: “Ela vai voltar. Você vai?” 

Olhei para trás e para os lados para ver se era comigo mesmo. Era. Achei, então, que ela podia ter-se enganado, me confundindo com alguém com quem já estivesse conversando antes - porque a frase que me disse só podia ser a continuação de uma conversa... Enfim, não tive outro jeito senão dizer: “Desculpe não entendi” - ao que ela retrucou: “Você não é minha colega na ginástica? A professora vai voltar às aulas...” 

Só então a luz do entendimento passou por mim! Minha dificuldade em reconhecer fisionomias, aliada a máscara que encobria seu rosto não me permitiram identificar, de pronto, a companheira de exercícios. Ela, por sua vez, parece ter continuado, com a fala, algo que havia iniciado em pensamento.

Quantas vezes já fiz isso? Penso coisas e, ao falar, presumo que o interlocutor captou toda a ideia pensada. Às vezes, acho graça da situação e esclareço a conversa. Pior é quando me irrito por não obter compreensão. Isso é muito comum nas relações com familiares e amigos, quando a intimidade torna tudo permitido. 

Uma variante desta situação tem a ver com a expressão de nossas vontades. Temos o hábito de achar que todos a nossa volta pensam, agem e gostam das coisas da mesma forma que nós. Então, consideramos dispensável explicar o que, para nós, é totalmente claro. E isso acaba causando muitos desentendimentos. Presumir que a pessoa entendeu o que eu pretendia exprimir com determinada palavra ou gesto é abrir a porta para possíveis mal-entendidos.  Pode-se, inclusive, causar problemas dolorosos e de longa duração. Quantas amizades se desfizeram sem que um dos envolvidos nem soubesse o porquê? Anos mais tarde, as coisas se esclarecem, mas o mal já foi feito. 

Na posição de receptor da mensagem, às vezes me pego incomodada com a quantidade de explicações que alguém me dá. Olhando por esse ângulo, melhor explicado demais do que entendido de menos.

O óbvio precisa ser dito, se se quer ter certeza de que a mensagem foi compreendida. A clareza na comunicação é, indubitavelmente, nossa melhor ferramenta para a paz no cotidiano.

No futuro, quando a ciência descobrir uma forma de ler pensamentos e pudermos saber, exatamente, o que se passa na cabeça de nossos semelhantes, resolveremos este problema. Mas, com certeza, criaremos alguns outros... Assunto para uma próxima crônica.


quarta-feira, 23 de setembro de 2020

Florescer


 Minha amiga e professora de yoga Raphaela (@casadosolyoga), em sua aula na semana passada, nos perguntou: - Como é a pessoa que você deseja ser?

Isso me levou a uma viagem no tempo. Lembrei-me do início de minha vida adulta, quando tinha na cabeça, exatamente, a mulher que eu queria ser no futuro. 

Aquele futuro chegou e eu sou, em termos gerais e com algumas modificações, aquela mulher que idealizei. Por isso, quando me foi jogado tal questionamento, assustei-me por não saber o que imaginar.  Sensação terrível essa de já ter alcançado o objetivo traçado na juventude – nunca pensei que diria isso algum dia - e não ter o que almejar. Estacionei na vida e agora vou ficar na janela vendo a banda passar?

Minha querida amiga e professora de dança Maria Inês (@convivarte) mencionou ontem a analogia da vida com o jogo “Resta um” (aquele com os pininhos, que se joga sozinho): só é possível jogar se faltar um pino. Ou seja, só há movimento, no jogo e na vida, quando não se está completo. Parar para pensar sobre isso pode ser a diferença entre viver por viver ou dar um colorido todo especial a nossa existência. Entre vegetar ou florescer.

Desfrutar da plenitude das metas cumpridas e desejos realizados é ótimo por algum tempo. Mas, segundo alguns especialistas, fomos feitos para a ação. Mover o corpo, a mente, a alma. Mover o coração... Parar é estagnar-se. Porque a vida não para nunca. E o status quo de ontem, já não satisfaz hoje e estará ultrapassado amanhã. 

A mulher que almejei ser é ótima para o presente, mas já não servirá para um futuro em que a idade avança, a tecnologia chega, os netos talvez venham... 

Por isso é preciso florescer a cada primavera. A flor que se abriu neste ano não é a mesma que surgiu ano passado, embora igualmente bela.

Meu dever de casa, portanto, é criar a imagem, como fiz há muitos anos, da mulher que desejarei ser daqui para frente.  E florescer, plena e realizada, mais uma vez.

Você tem ideia da pessoa que deseja ser nas próximas estações?


quinta-feira, 10 de setembro de 2020

A alegria que reside no olhar


 

Hoje recebemos uma visita ilustre. Um magnífico tucano. Do alto da bananeira do terreno vizinho, ele olhava o mundo com altivez. Seu bico, de um alaranjado dégradé brilhante, estilo propaganda de lápis de cor ou, mais moderna, de TV 8K, luzia ao sol das onze horas. Ficou por ali, tranquilo, posando para as fotos que eu me apressei a tirar. Estivemos nessa brincadeira por uns dez minutos, até que ele alçou voo e foi encantar outras paragens. Deixou-me aqui, cismando com meus botões.

Esse terreno ao lado de minha casa, repleto de árvores frutíferas, provoca em mim, com frequência, uma certa indignação pelas frutas não colhidas deixadas a apodrecer. Sentimento oriundo dos resquícios da cidadã da metrópole, onde comer fruta direto do pé é um luxo comemorado com efusão. Extasiada pela visão do pássaro bicudo de olhos azuis, caí em mim: foram as frutas maduras que o atraíram, assim como fazem a tantos outros emplumados multicoloridos que alegram as minhas manhãs. Passarei a olhar o pomar, de agora em diante, de maneira mais bondosa. 

Dia desses uma amiga se auto qualificou como “metódica chata”. Perguntei: - Por que chata? Disse-me que muitas pessoas não veem com bons olhos quem é extremamente disciplinada. Retruquei que há, na mesma medida, pessoas que consideram disciplina e método uma virtude (eu, por exemplo, corro atrás dessas faculdades). Tudo depende do modo como se enxerga. Melhor escolher as avaliações positivas para usar como parâmetro.

Minha mãe e minha tia eram pessoas muito diferente. Quando saíam juntas, enquanto a primeira, ansiosa, ficava de olho na estrada e no relógio, a irmã, mesmo dirigindo atentamente, não deixava de apreciar o ipê florido à margem da estrada ou a beleza da lua que surgia. O prazer de viajar não era um sentimento que compartilhavam. Mas, acima de tudo, olhavam a vida por ângulos diversos.

Ao longo de minha existência, fui treinando o olhar. Ou será que fui destreinando? Vivemos acostumados a procurar, antes de tudo, a utilidade das coisas. Mas não acho que nasçamos assim. Parece-me que o natural, o instintivo, é procurar a beleza. A vida civilizada vai nos endurecendo e deixamos de enxergar com a alma para ver só o que os olhos alcançam. E, com um pouco mais de civilização, esses mesmos olhos só enxergam o feio, o ruim, o difícil. Do que é belo, só o que for também útil. A mente passa a dominar o olhar e o coração se retira. Os olhos da alma vão perdendo a luz e a vida vai perdendo a graça. É preciso resgatar o encantamento da criança que sopra seu primeiro dente de leão, que molha pela primeira vez, os pés na água do mar. Ele ainda está dentro de nós, como num pique-esconde, esperando ser encontrado.

Mesmo em caminhos pedregosos, o modo de olhar a paisagem, a escolha de pontos de vista diferentes, tornam a caminhada mais colorida e muito mais leve.

“Os tristes acham que o vento geme, os alegres, que ele canta” (atribuído a Luís Fernando Veríssimo ou à sabedoria popular)