Levantou-se,
esfregou as mãos para tirar a sujeira do asfalto, pegou a mochila e correu para
casa. A adrenalina não a deixava perceber a dor do joelho esfolado. Antes de
abrir a porta da sala viu o rasgo na calça.
- Minha mãe
vai me matar.
Entrou, tentando
não fazer barulho, mas a avó veio da cozinha, enxugando a mão no pano de prato.
Olhou diretamente para suas pernas:
- O que
aconteceu?
- Caí na
escola. Estou bem.
A avó mal
ouvira e já havia ido buscar o temido remédio para machucados, que ardia até a
alma! Suportou em silêncio, enquanto
avaliava se teria, ali, uma cúmplice. Melhor
não. Preocupada, ela acabaria abrindo o bico. E a mãe não poderia saber jamais!
- Me dá sua
calça de uniforme. Vou cerzir e vai ficar como nova, você vai ver.
A avó era
um anjo em sua vida. Tinha tanta paciência... falava tão mansinho... Ao
contrário da mãe, sempre correndo, sempre brava. A menina adorava quando era a
avó que penteava seu cabelo crespo, que amanhecia embaraçado como um ninho de passarinho.
Ela pegava mecha por mecha, começando o desembarace pelas pontas e depois
subindo até a raiz. Era como um cafuné. Já a mãe, sempre apressada, com horário
para chegar ao emprego (que não podia perder, pois era o que sustentava as duas),
forçava o desembarace da raiz à ponta. A cada investida do pente, um grito e
uma bronca.
O joelho
ainda doía, agora liberto do atrito do tecido de tergal do uniforme que ela
trocou por um shorts. A palma das mãos também estavam esfoladas, percebia agora.
Melhor não mostrar a avó para que não viesse com o remédio maldito outra vez. Preferia
quando ela espremia as folhinhas daquela planta que tinha no vaso do quintal, que ninguém sabia o nome (nem a avó), mas
todos já haviam experimentado seu efeito cicatrizante. E o melhor: não ardia! O
vaso, porém, não resistiu ao extremo
calor do último verão.
Abriu a
mochila. O impacto bagunçou tudo. Ah, não! Amassou a garrafinha de levar suco! Saiu
de mansinho e a deixou no lixo do prédio ao lado.
- Vó, você
pode me dar uma garrafa de suco nova? Perdi a minha no recreio. Minha mãe vai
brigar comigo...
- Amanhã
vou à Vinte e Cinco com sua tia e compro. Diga à sua mãe que esqueceu aqui.
Depois falo com ela.
O primo
chegou. Trouxe figurinhas do álbum da Copa 74 para trocarem. Ela tinha Rivelino
e Piazza, que faltavam a ele. Mas ele só tinha uma que ela precisava: do
Goleiro Croy da Alemanha Oriental. Enquanto ele procurava outra, ela pensava.
Essa Copa veio a calhar para entender os
conceitos de oriental e ocidental que estava estudando na escola. Olhando pro
mapa, Alemanha Ocidental ficava do lado esquerdo e a Oriental do lado direito. Mas
pensando com o corpo, era o contrário. Oriental no braço esquerdo e ocidental no
direito, norte na frente, sul atrás. Falou alto esta última frase, estalando os
dedos para identificar os lados. O primo a chamou de maluca. Ela o chamou de
tonto. Mas só começaram a brigar mesmo quando ele tentou convencê-la a ficar
com uma figurinha repetida, do Cruyff da Holanda, alegando que era muito
cobiçada e seria fácil trocar.
-Tá achando
que sou boba, né? Nem pensar. Pode guardar seu holandês.
Ele saiu
pisando duro, só com o Rivelino. E ela voltou a se preocupar com o ocorrido. Horas
passando, medo crescendo.
Quando a
mãe chegou, à noitinha, a menina estava toda preparada para mentir sobre o
joelho. Mas as perguntas não vieram. Com o rosto expressando o cansaço de um
dia especialmente difícil no escritório, a mulher mal entrou, mandou que
pegasse a mochila e se despedisse da avó para irem para casa.
Na saída do
prédio, duas vizinhas conversavam.
- O zelador
estava me contando que hoje, na hora do almoço, ali na rua debaixo, aconteceu...
A menina
gelou. Olhou para a mãe que, distraída com seus pensamentos, nem viu as duas fofoqueiras.
- Vem, mãe,
corre. O ônibus tá vindo.
No dia
seguinte, já mais calma, teve, porém, o cuidado de fazer o caminho orientado
pela mãe, mais longo, na volta da escola. A avó, ao recebê-la com o carinho de
sempre, perguntou do joelho e lhe entregou a garrafa de suco nova.
- Toma
cuidado com essa.
- Pode
deixar.
Disse que
iria à reunião da Seicho-no-ie e faria uma “forma humana” (uma espécie de
pedido de oração) de saúde pra ela, para a breve cicatrização do machucado. Mandou
que tivesse pensamento positivo, como sempre fazia. Não permitia que as filhas,
as netas e os netos proferissem palavras de desanimo ou auto-depreciação. “As
palavras têm poder” , dizia ela.
Mais tarde,
a menina foi ao jornaleiro comprar revistas em quadrinhos e, para sua surpresa,
o homem lhe perguntou:
- Você não é a menina que....
Enquanto ele falava, o medo cresceu. Ele havia
visto, claro! Foi bem ali em frente.
- Não, você me confundiu com alguém.
Saiu
depressa, sem comprar nada.
E se ele
contasse para a sua avó? Ou pior, para sua mãe? Era um temor sem fundamento, já
que nenhuma das duas frequentava aquele lugar. Mas medo é racional? A menina
nunca mais passou na frente daquela banca de jornal.
A
derradeira cutucada no pavor veio em forma de pesadelo, naquela noite. Um
jornal dançava diante de seus olhos com uma notícia em primeira página:
MENINA
DESOBEDECE A MÃE, ATRAVESSA FORA DA FAIXA E SE DÁ MAL
A menor
LMC voltava da escola quando, ao descer do ônibus, atravessou a rua
distraidamente no meio do quarteirão. O fusca freou mas não conseguiu evitar o
impacto. Com o choque, a criança voou junto com sua mochila, aterrissando na
outra pista que, por sorte, estava vazia. O motorista tentou prestar socorro
mas a menor, com o joelho esfolado, se evadiu do local.
O tempo
passou. A mãe envelheceu, a avó morreu e a menina, já mulher, nunca teve
coragem de contar a mãe sobre o dia em que, por não seguir suas ordens, tinha
sido atropelada. Não contou esse e nem tantos outros segredos, em escalas de
gravidade maiores ou menores. Não contou nunca, nada.